O silêncio preenche as paredes. De repente um barulho. Uma cabeça branca se estica e vê um carro desaparecer na esquina. Braços cruzados na janela esperam e olhos miúdos vagueiam sem interesse e cansados. Eles se voltam para dentro, deixando sem vigilância a rua de poucas casas e muitas árvores.
Mãos ossudas resolvem pegar uma flanela e passar entre os espaços vazios das cadeiras empoeiradas. Findado o serviço, elas se abrem, os cinco dedos rijos, para conferir os móveis. Ficam satisfeitas. A cabeça se apruma, a senhora, dona da cabeça, resolve tomar banho, almoçar e depois tirar o cochilo habitual. Quando desperta, retorna à sala, arrastando seus chinelos de pano. Senta no sofá entre almofadas gastas e puídas, procura o controle remoto para ligar a televisão. Não demora mais do que cinco minutos, se levanta, Definitivamente, não há nada que preste, resmunga.
Caminhando lentamente até chegar ao quintal. Lá dá uma espiada no céu para ver se vai chover e logo se senta num banco à sombra. Depois de olhar em volta, torna a ficar de pé e vai até a roseira para tirar com cuidado um galho. Em seguida, vê que a goiabeira se encheu de flor e que as petúnias precisam de um pouco de água. Molha as plantas. Entra, liga o rádio e toma seu café com leite e bolachas.
Logo a casa se encontra às escuras e alguns clarões de poucos faróis iluminam as paredes e o teto da sala. Na quase escuridão, os objetos em permanente ociosidade durante o dia se mostram agora ainda mais inertes. A senhora olha em especial para um. O porta-retratos que traz a figura de seu marido jovem. O falecido sorri meio sem graça. Pensa com gratidão na única gentileza de que ele foi capaz, a de morrer primeiro que ela e sorri também.
Antes de deitar a senhora se pôs a ajeitar algumas coisas no armário do quarto. Acabou encasquetando com uma caixa jogada na prateleira de cima. Pegou uma escada, subiu três degraus e nas pontas dos pés se equilibrou para tentar pegá-la. Tanto mexeu, que a caixa acabou lhe caindo à cabeça, espalhando pedaços de papelão para todo lado e fazendo saltar de dentro, enrolada em papel manteiga, uma camisola que há muito não via. Estava um pouco manchada e cheirando a naftalina, mas a beleza do corte godê e a maciez da seda ainda faziam dela uma bela peça de roupa.
A senhora estendeu a camisola na cama e viu que ela certamente não lhe caberia mais e resolveu deixá-la ali mesmo para decidir o que fazer. Enquanto olhava, pensou que, afinal, o falecido não havia sido assim tão ruim e lembrou dos bons momentos que passaram juntos. Um calor agradável lhe percorreu o corpo. Então, despiu-se, deitou-se na cama, cobriu-se com um lençol e ficou em silêncio esperando que o sono viesse.
Como não conseguisse esquecer a camisola deixada ao lado, sua mão buscou tocar o tecido novamente, se deliciando com a maciez e a finura da peça. A outra mão, livre, acabou encontrando o ventre, que acariciado, moveu-se num espasmo.
Teve medo.
Mesmo assim, com delicadeza, deixou que a mão fosse escorregando um pouco mais para baixo. Assim, leve e suavemente, suas adormecidas carnes despertaram e foi sem peso, culpa ou vergonha que Alzira se entregou.
Depois de um longo dia, uma cabeça branca agora repousa, uma camisola jaz caída no assoalho e o silêncio volta a se derramar na rua de poucas casas e muita árvores.
Leave A Reply