Maria Júlia
Abro novamente a caixa preta da memória, a portadora de reminiscências da infância e juventude, repleta de fitinhas, laços, bijuteria, velhas fotos, retalhos, objetos, coisas que me fazem recordar perfumes, comidas, sabores, música, festa, gestos, frases. Ditos e feitos de pessoas que já se foram.
As lembranças não aparecem em ordem cronológica nem são coesas. É que não há muita coerência na vida. O ser humano, dizem as más línguas, é um dos animais menos harmoniosos que habitam o planeta. Esse pensamento não pretende ser original, é apenas uma óbvia constatação do que se vê por aí.Pois bem, pode até não haver coerência, mas minha memória sabe selecionar.
Então, prefiro encaixotar só o que foi bom, doce, alegre, gostoso, engraçado. Lá dentro estão as lembranças de alguns tios – os tios e tias que tanto enfeitam a nossa infância. Os primos, alguns sapecas, outros sérios demais. Um ou outro professor, pois sempre houve um que ensinou e nos marcou. Sem falar no pai e na mãe, é claro. Todos passam pela minha cabeça, vão e vêm, saem de cena, e de repente, sem eu esperar, até falam. Uma irmã aparece e me diz que a tal frase não foi do tio, mas do pai, que o retalho não era da fantasia de odalisca, mas de cigana, que o anel foi presente de um sapo que nunca virou príncipe, ou vice e versa.
A prima me assegura que o perfume sedutor da tia não era Chanel, mas “Femme”, de Marcel Rochas. Perturbadoras são as interferências que por vezes contestam ou interrogam o nosso fluxo de pensamento. Mas, e daí? Que importância tem isso? Relevante é a imagem da tia elegante e de bom gosto. O fato é que a tal fala foi dita na hora devida, e que os retalhos de Carnaval me revestem das fantasias do meu imaginário: uma faixa dourada, uma flor de havaiana, tiras de lantejoulas. Só disso preciso para que todos os fevereiros da minha infância e juventude se desenrolem na minha frente. Como um filme que vai rodando automaticamente, sem efeitos especiais.
As perguntas factuais de quem, como, onde e quando não cabem dentro desta caixa preta. Não explicam os desastres sofridos durante o voo, já que a causa das falhas que deram origem aos acidentes nem sempre é fácil de se determinar. O que está na superfície, sim, isso pode ser revirado e remexido. No fim das contas, meus retalhos, perfumes, bijuteria, fotos, aparentemente são de simples leitura e interpretação. Não é necessário ir lá no fundo nem ser um arqueólogo. Nem mesmo mergulhador. É que, como Freud já explicou e Paulo Leminski declarou:”viver é difícil, o mais fundo está sempre na superfície”. Boiando dentro da minha caixa preta.
Dezessete de março de 2015.
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