
Havia ondas em franjas, céu azul sem nuvens, brisa e cheiro de mar. Havia a luz da manhã, que avançava devagar no assoalho do apartamento quase sem mobília. Dentro havia também o silêncio, mesmo quando coincidia ter barulho do mar e do vento.
Nada perturbava o sono dos empoeirados objetos. Eles há muito viviam sem o cuidado de viva alma.
Um hipotético espectador, que ali entrasse, ficaria encantado. O cenário estava carregado de eletricidade, tal como em um suspense, no momento em que se espera a entrada do personagem principal em cena.
De fato um personagem apareceu. Tratava-se do dono da casa. Ao chegar, ele permanece longe da janela a apreciar o ambiente. Parece atraído pela luz que entra e se move pelo chão da sala. Não reage quando ela o alcança e ele se transforma em espectro, com feixes de luz a se expandirem em sucessivas auras.
Se voltássemos à hipótese de um espectador, este não veria senão os objetos inanimados e o facho de luz. O personagem não estaria ali. Sua presença era materialmente impossível. A certeza era do tipo que se constata em cartório. E com certeza, ele estava morto há mais de cinco anos.
No entanto, ali estava. Caminhava. As mãos para trás, a cabeça erguida, passeava de um lado para outro no salão de seu outrora refúgio e lar.
Um jornal, largado sobre a mesa, lembrava ao defunto andante que havia problemas no mundo e que sua morte não fazia parte das preocupações dos mortais que ainda viviam. Na verdade, apesar de famoso e rico, sua passagem para o outro mundo deu-se sem muito alarde. No máximo, uma notinha em final de página de veículo impresso. Na internet, nada.
Dane-se, Dane-se o mundo, berrava o defunto, ex rico e famoso, a saltitar e a socar o ar. Não pensarei neles, não quero e nem preciso que me estraguem o dia.
O concerto de Brandemburgo Nº 1 passou a tocar no aparelho de som abandonado no canto da sala. Aos primeiros acordes, deu pulinhos de alegria no assoalho, para ele, impecavelmente encerado e limpo, a ponto de ver sua face radiante ali refletida.
O exercício deixou o falecido cansado. Cansado e feliz. Ontem, àquela mesma hora, ele se arrastava e se escondia atrás de armários, portas e cortinas. Nada de brisa, cheiro ou claridade. Envolvia-lhe a escuridão. Ela saía de suas entranhas, se esparramava pela sala e impregnava toda a casa. Aconteceu de um infeliz corretor do imóvel deixar as cortinas do apartamento cerradas e o dono da casa não conseguir abri-las. Horror que ocorria quase sempre.
Hoje sua filha apareceu. Abriu as cortinas, as janelas e antes de ir embora, ficou meia hora olhando o mar. Pai e filha, lado a lado, maravilhavam-se ao assistirem uma gaivota deslizar sobre as águas. A ave mergulhou. Os dois espectadores, o vivo e o morto, esperavam, a respiração suspensa.
Quando a gaivota reapareceu, trazia no bico um peixe que se debatia e tentava escapar. O peixe, a despeito da morte iminente, pleno de presente, sentia que viveria para sempre. A moça, a olhar o mar, também. Ela sorriu. O finado sorriu. Ou achou que sorria, o que para ele dava na mesma.
Ele achava que ainda era um homem, que era gente, e viveria para sempre.
Peço licença ao cronista. Os mares são outros.
“Apenas passo os olhos pelos jornais; jogo-os fora, alegremente, porque eles pretendem dar-me notícia de muitos problemas, e eu não tenho nem quero problema nenhum.Acordei um pouco tarde, abri todas as janelas para o sábado louro e azul, e o mar me deu bom-dia. Passa um pequeno barco branco no mar de safira: como vai ligeiro, como vai contente, com seu bigodinho de espumas brilhantes! Uma ave se detém um instante peneirando, depois mergulha na vertical em grande estilo; quando volta, um pequeno peixe brilha em seu bico”. (Rubem Braga – A BOA MANHÃ)
7 Comments
Gostei da reescrita da crônica sob outro ponto de vista temporal e até corpóreo. A minha conclusão a partir do seu texto é de que somos todas eternas, se nisso acreditamos. Como recomendou Guimarães Rosa, “introduzir, no tempo de cada dia, o máximo de eternidade”.
Contando todos os nascimentos havidos, quantas pessoas já terão vivido neste mundo? E se todas estiverem por aí, como o personagem? Que multidão, hein!
Se contarmos os mortos-vivos vivos, aí é que a situação complica.
Eliana, inusitada, surpeendente, surreal. bonito!
Obrigada, Júlia.
Texto surpreendente e sensível! Estava indo por um caminho e de repente vai por outro. Muito bom de se ler! E deixa em aberto essa eterna dúvida sobre a eternidade.
Pois é. Pedirei licença ao fantasma do Rubem Braga pelo o que poderia ter sido e não foi. Carrego o peso de minha época e de meu lugar.