
A Sofia era viúva e tinha um filho muito chato. O rapaz puxara o pai. O pai, alguns bons anos mais velho que Sofia, era um desses descendentes de famílias cariocas com dois sobrenomes. Famílias que insistem em repeti-los em cada novo rebento para marcar a genealogia portuguesa de nobreza decadente. Com o sobrenome parecia vir também a inclinação para a empáfia e a implicância, em especial com o jeito de Sofia, que não tinha dois sobrenomes, era só Sofia Maria dos Santos mesmo.
O marido de Sofia morrera quando o filho deles tinha 17 anos e desde então o jovem tomara para si as funções do pai e reclamava do cabelo longo e cacheado da mãe, o que para muitas mulheres era motivo de inveja, mas para o jovem com espírito de velho dava uma aparência de desleixo, assim como para o pai. Reclamava também do sotaque forte e marcado da zona norte do Rio que, mesmo depois de tantos anos morando no Flamengo, e depois de tantos anos do marido constrangendo sua fala, Sofia não se desvencilhara.
Depois de viúva, Sofia renovou as amizades que há muito não via por causa do marido casmurro e arrogante e passou a trazer as amigas para um churrasco na piscina da cobertura, coisa que o marido nunca lhe permitira e ela aceitava para não causar mais brigas. Como o pai, o rapaz achou ruim, ele tinha impressão de ouvir os cochichos dos vizinhos reclamando da conversa alta, das risadas e da música, e se envergonhava. Apelou para a mãe, que não lhe deu ouvidos para não causar mais brigas.
O pior foi quando a mãe resolveu frequentar aulas de dança e sair com os colegas para bares de música e bailes. Aprender dança de salão era um sonho que Sofia tinha desde jovem e que adiara com a gravidez e com o casamento precoce com esse senhor advogado que trabalhava no mesmo prédio onde ficava sua faculdade de Letras numa universidade particular. Sofia se encantou com aquele homem bem vestido num terno cinza escuro, com seus ares de inteligência e de bem-sucedido. Nas primeiras conversas, ele logo disse que não gostava de dançar. Essa informação abalou Sofia e ela, mesmo assim, resolveu ignorar seus instintos e achar que podia mudar a opinião do namorado com o tempo. Mas não. Ele era inflexível, não gostava de dançar. Antes que pudesse mudar de ideia, Sofia engravidou e achou, como tantas outras, que o mais acertado era casar.
Como o pai, o filho entrou para uma prestigiada faculdade de direito e mantinha por perto os amigos juristas e advogados do pai. Era certo que, ao se formar, já estaria empregado em algum grande e conhecido escritório. O sonho do pai, seu sonho também, era entrar para a magistratura. Com sua sisudez e seu ideal de moralidade aparente que os dois sobrenomes e a ambição de juiz lhe conferiam, o rapaz não aceitava o jeito festivo, bailante, livre da viuvez da mãe. Queria porque queria que Sofia agisse com uma senhora recatada e do lar em luto pela morte do seu amado e venerável esposo.
Agora Sofia, mesmo tendo aguentado tantas coisas desagradáveis quando o marido era vivo, fosse pelo filho, fosse pelo bem da vida conjugal, de repente fora tocada por uma fagulha de possibilidade. A possibilidade de viver a vida como bem desejasse. Ela não era uma personagem de um conto qualquer do século XIX, escrito por um homem que, àquela época, não poderia imaginar um final feliz e de rebeldia para suas personagens, como tanto leu na bibliografia da faculdade.
Rebeldia contra um filho? Ora, ele não era seu marido e nem seu pai, e mesmo que o fosse, estamos nos século XXI e Sofia se deu conta de que não devia nada a esses homens e a nenhum outro. Ela era senhora de si e apenas podia lamentar que sua alegria incomodasse tanto seu filho. Recomendou-lhe sessões de análise e ela voltou a estudar espanhol, preparando-se para o curso de tango que faria em Buenos Aires na próxima primavera.
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* história livremente inspirada no conto “The Son’s Veto” , de Thomas Hardy, também traduzido pela autora (inédito).
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