
Após meses sem poda, os galhos das árvores pendem como cadáveres. Os mais delgados, presos só por uma ponta aos mais robustos, balançam com o vento, impondo finas sombras ao persistente feixe de sol que entra pela janela. Os pseudocorpos móveis contrastam com os reais corpos rígidos nas calçadas.
Ele dorme. Os lençóis enrolados nos pés. Ela nota que se levantou sem tocá-lo. Não lembra bem quando isso começou. Costumava acordar e estender a mão. Quando ele estava, tocava suas costas, passava as pontas dos dedos em cada vértebra. Na esperança de, por acidente, despertá-lo. Quando ele não estava, esticava os braços, acariciava a cama, buscando o corpo ausente e sonhava.
É manhã. O café já não tem gosto.
— É quinta, vou tirar o lixo, senão vai ficar apodrecendo até semana que vem, ele disse, acordando.
— Não, amor, é terça.
— Não, anjo, é quinta.
— Quinta? Está bem. Aproveita e joga fora o resto de comida do potinho do Júpiter.
Animais não são afetados pelo vírus. Saíram do isolamento. Circulam em pequenos grupos. Júpiter, ela pensa, deve ter encontrado e reconhecido os seus, não vai voltar.
— Você lavou as máscaras? Preciso de uma para levar o lixo.
— Lavei. Estão penduradas atrás da porta do banheiro.
Sem máscaras, homens e mulheres morrem em minutos. Ela toca o vidro da janela para sentir o calor e a luz. Esquentou novamente. Dizem na TV que a quarentena dura 180 dias, mas em 180 dias não passam dois verões.
— Amor, descansa, ela diz, deixa que eu levo o lixo.
É manhã. O café já não tem gosto.
Ela amarra os sacos, troca os sapatos de casa pelos de rua. Para à porta do banheiro e vê que ele, ainda deitado, estende os braços e acaricia a cama.
À tarde, o lixo estava lá. É sábado.
6 Comments
Quando a convivência é harmoniosa, novas rotinas vão brotando, novos cuidados, novas percepções. Quem não está se reiventando nesse momento? O amor também se veste dw banalidades e máscaras laváveis.
Apesar de tudo mudar ao nosso redor, a mudança interna já acontecida segue inatingida… muito reconhecível, é bom ler sobre a verdade nua e crua.
Um abraço, Elaine
Gosto muito da forma como o conto se desenvolve, uma emoção contida, quase sussurrada. Muito se fala da rotina que destrói o amor, mas acredito que os amores se constroem e se perpetuam nos pequenos atos da rotina, no carinho matinal ou na percepção de sua falta, na gentileza do partilhar tarefas, no trato delicado. O amor desse conto, me parece, começa a se redescobrir em meio a novas rotinas, em que se impõe um excesso de presença. Ainda bem que 180 dias não duram dois verões!
Amor/ hábito, o dia a dia, o cotidiano dos dois a olho nú. Cruel na sua indiferença, mesmo em tempos de cólera. Real, bem(d)escrito, perfeitamente reconhecível!
Fiquei intrigada pela relato seco, direto, quase sem emoção, sobre um cenário mórbido e apocalíptico e o contraste com o cotidiano e, mais ainda, com os apelidos afetuosos trocados entre o casal. Gostei da ambiguidade tal como ela me impactou e me fez questionar: há amor ali ou é apenas rotina? A rotina é uma forma de amor? A vida nesse cenário transforma as noções de romantismo?
Já no primeiro parágrafo a essência do conto crônica de Júlia se revela. Situações consideradas naturais e corriqueiras, como galhos a balançarem em árvores, servem de pano de fundo ao apocalipse que se abateu sobre a terra. O levantar da cama de um casal, o lixo por retirar, a comida do cachorro, tudo isso é vivido em uma dimensão outra daquela que costumávamos chamar de normal.
Se a condição de existência dos personagens – que poderiam ser qualquer um de nós, que também vivemos o fim do mundo – é difícil, não é por isso que a ela foi acrescido peso ou agonia. Pelo contrário. Vemos aqui uma forma possível, necessária até, de se ver e viver a catástrofe. Afinal, ter humor é também saber resistir.